Em uma decisão considerada um marco para a saúde mental, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, aprovou no dia 11 de dezembro o uso doméstico do primeiro dispositivo de estimulação cerebral indicado para o tratamento do Transtorno Depressivo Maior (TDM).
O dispositivo, denominado FL-100 — também conhecido como Flow — tem formato semelhante a um headset ou a fones de ouvido de última geração. Diferentemente de aparelhos voltados ao entretenimento, o equipamento entrega uma terapia de neuromodulação chamada Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua (ETCC), técnica não invasiva já utilizada em ambientes clínicos.
Na prática, o aparelho envia uma corrente elétrica de baixa intensidade para o córtex pré-frontal dorsolateral, região cerebral relacionada ao controle das emoções. Segundo a psiquiatra intervencionista Karine Furlanetto, entrevistada pela CNN Brasil, essa abordagem se diferencia dos antidepressivos tradicionais por atuar diretamente na hipoatividade crônica de redes cognitivas. “Enquanto os medicamentos tentam alterar o sinal químico, a ETCC facilita o disparo neuronal, tornando o cérebro mais responsivo aos estímulos positivos e à psicoterapia”, explica a especialista, que atua em Curitiba (PR) com tecnologias inovadoras em psiquiatria.
A corrente elétrica utilizada no tratamento não ultrapassa dois miliamperes e não provoca sensação de choque. Os efeitos percebidos pelos pacientes costumam ser leves, como formigamento, coceira local, aquecimento na testa ou pequenas pinicações na pele.
O FL-100 é fabricado pela Flow Neuroscience, empresa sueca sediada na cidade de Malmö. O dispositivo surge como alternativa domiciliar à Estimulação Magnética Transcraniana (EMT), tratamento realizado em clínicas especializadas com equipamentos de grande porte, alto custo e geralmente indicado para casos de depressão resistente.
Avaliação científica do dispositivo
A liberação do tratamento psiquiátrico para uso domiciliar foi baseada em um estudo robusto, publicado em outubro de 2024 na revista científica Nature Medicine. O ensaio clínico avaliou especificamente a eficácia e a segurança da ETCC quando utilizada fora do ambiente clínico controlado.
O estudo foi liderado pelo King’s College London e contou com participação brasileira relevante. O pesquisador Rodrigo Machado-Vieira, professor do UTHealth Houston, atuou como investigador principal no centro de ciências da saúde norte-americano.
Ao todo, 174 adultos com depressão moderada a grave participaram do estudo, sendo divididos aleatoriamente entre grupo de tratamento ativo e placebo. Os participantes realizaram sessões de 30 minutos durante dez semanas, inicialmente cinco vezes por semana, em ambiente domiciliar.
Os resultados demonstraram que o grupo submetido à estimulação real apresentou taxas de resposta três vezes maiores em comparação ao placebo. Cerca de 44,9% dos participantes alcançaram remissão completa dos sintomas, frente a 21,8% no grupo controle. Em comunicado, Machado-Vieira afirmou que os dados confirmam um perfil positivo de segurança e eficácia, semelhante ao observado em estudos anteriores com pacientes com depressão e transtorno bipolar, além de destacar o potencial da terapia domiciliar para ampliar o acesso ao tratamento.
Uma nova via terapêutica
A aprovação do FL-100 marca uma transição relevante no cuidado da depressão, com o avanço das terapias chamadas “bioelétricas”. Para a psiquiatra Karine Furlanetto, esse movimento representa o abandono da dependência exclusiva de fármacos metabolizados pelo fígado, em favor de intervenções diretas nos circuitos cerebrais. Segundo ela, dispositivos desse tipo evitam efeitos colaterais comuns dos antidepressivos, como ganho de peso e disfunção sexual, frequentemente associados ao abandono do tratamento.
O dispositivo está previsto para chegar ao mercado norte-americano na primavera de 2026 (segundo trimestre), sendo indicado para adultos a partir de 18 anos com depressão maior moderada a grave, desde que não considerados refratários ao tratamento medicamentoso.
O sistema conta ainda com um aplicativo, disponível gratuitamente na App Store e no Google Play, que orienta o uso do aparelho e acompanha a evolução clínica do paciente, estimulando maior autonomia no processo terapêutico. Para a primeira autora do estudo, Rachel Woodham, da University of East London, a expectativa é que a ETCC se consolide como uma terceira alternativa viável para o tratamento da depressão moderada a grave.
Karine Furlanetto avalia ainda que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tende a acompanhar os avanços internacionais. Segundo a especialista, em breve poderá ser tão comum “prescrever um aparelho” quanto prescrever medicamentos, especialmente com o apoio de protocolos de telemedicina para monitoramento do uso domiciliar.


