Embora o uso medicinal da cannabis seja frequentemente associado a avanços recentes na medicina, registros históricos revelam que essa prática já era comum no Brasil desde o século XIX. Em 1901, o médico Francisco de Castro, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e referência na área de Clínica Propedêutica, recomendava o uso de extrato de cannabis para o tratamento de espasmos e dores vesicais, conforme artigo publicado no periódico científico Brazil–Medico.
Na realidade, o uso medicinal da planta já era amplamente difundido desde 1870, conforme demonstram anúncios veiculados no Jornal do Commercio, que promoviam os chamados “Cigarros Índios”, indicados para o tratamento da asma e que continham cannabis em sua composição.
Um Panorama do Uso Terapêutico e da Posterior Proibição
Durante o final do século XIX e início do século XX, a cannabis era prescrita por médicos brasileiros em diversas formas farmacêuticas – como extratos, pílulas ou mesmo cigarros – para o tratamento de diferentes condições clínicas. Bastava apresentar uma receita médica em uma farmácia para adquirir o medicamento.
Contudo, esse uso medicinal foi gradualmente suprimido. A pesquisa do historiador Saulo Carneiro, defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fiocruz, aponta que esse apagamento ocorreu em razão de fatores sociais, culturais e políticos. Segundo ele, o discurso proibicionista da época foi fortemente influenciado por ideologias racistas e eugenistas, associando a cannabis à população negra e à cultura popular, marginalizando seu uso social e religioso.
Carneiro identificou dois principais grupos de influência dentro da medicina da época:
- O grupo clínico-farmacêutico, que utilizava a cannabis com respaldo científico;
- E o grupo da medicina social, vinculado ao eugenismo, à psiquiatria e à medicina legal, que se opunha ao uso da planta com base em argumentos morais e higienistas.
Da Regulamentação à Criminalização
A partir da década de 1930, com a criação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), o Brasil passou a adotar uma política cada vez mais restritiva em relação à cannabis. Apesar de ser reconhecida como substância de propriedades calmantes, analgésicas e anti-inflamatórias, seu uso passou a ser regulado com base em sua classificação como substância tóxica e potencialmente viciante.
Essa mudança impactou negativamente a produção científica sobre a planta e praticamente interrompeu o avanço de pesquisas na área, cenário que só começou a ser revertido a partir da década de 1990.
O Retorno à Cannabis Medicinal no Século XXI
Somente em 2014 o uso medicinal da cannabis voltou a ganhar destaque no Brasil, após uma decisão judicial permitir que uma família importasse óleo de canabidiol (CBD) para tratar convulsões refratárias de uma criança. No ano seguinte, a Anvisa retirou o CBD da lista de substâncias proibidas e passou a regulamentar seu uso. Já em 2019, foi autorizada a venda de produtos à base de cannabis em farmácias brasileiras.
Em novembro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu mais um passo importante ao autorizar, sob condições específicas, o cultivo de cannabis para fins medicinais por pessoas jurídicas, desde que a planta possua baixo teor de THC. A medida reacende o debate sobre o uso terapêutico da planta no país.
Considerações Finais
Apesar dos avanços recentes, entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a própria Anvisa ainda adotam uma postura bastante restritiva em relação à prescrição de medicamentos à base de cannabis. Para o historiador Saulo Carneiro, essa resistência tem um componente ideológico que, por vezes, se sobrepõe às evidências científicas disponíveis.
“A cannabis não deve ser vista nem como uma panaceia, nem como vilã. Seu uso terapêutico, validado por estudos científicos, precisa ser debatido de maneira ética, técnica e livre de preconceitos”, destaca o pesquisador.
A retomada da cannabis como agente terapêutico no Brasil não representa apenas um avanço científico, mas também a correção de um apagamento histórico. Conhecer essa trajetória é essencial para compreender os desafios e as possibilidades do presente.
(com informações FioCruz)