Em algum momento, quase todos nós já nos deparamos com a sigla CID, seja em um atestado médico ou em um pedido de exame. A Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é uma ferramenta essencial para registrar, notificar e agrupar condições e fatores que influenciam a saúde humana. Com uma história que remonta há 150 anos, quando surgiram os primeiros esboços na Lista Internacional de Causas de Morte, a CID agora chega à sua 11ª versão, prometendo mudanças significativas. No Brasil, a adoção da CID-11 tem prazo máximo estabelecido para janeiro de 2027.
A nova edição foi moldada a partir de um extenso trabalho colaborativo realizado por diversas comissões internacionais. Utilizando os avanços da tecnologia, a CID-11 foi projetada para garantir uma linguagem comum e atualizada na área da saúde, com impactos que vão além da prática clínica. “A CID-11 é um avanço civilizacional, pois incorporou e estruturou o conhecimento contemporâneo da saúde e ampliou seus usos. Bem aplicada, ela será uma ferramenta espetacular para a gestão dos serviços de saúde”, afirma a médica cardiologista Silvia von Tiesenhausen de Sousa-Carmo, consultora técnica do Ministério da Saúde e representante do Brasil nos grupos de referência da OMS para implementação da nova classificação.
Com novas categorias para doenças, transtornos, causas externas de morte, anatomia, atividades, medicamentos e vacinas, a CID-11 inclui uma vasta gama de recursos inéditos para facilitar o trabalho dos profissionais da saúde. Silvia, que também atua no Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, apresentou as novidades em um seminário no Hospital Universitário da USP, além de ter publicado recentemente um artigo abordando o processo de implantação da CID-11 no Brasil.
Principais Novidades
A nova versão da CID traz duas seções adicionais, quatro novos capítulos e uma reorganização dos capítulos existentes, refletindo a evolução do conhecimento médico. Entre as novidades estão a inclusão dos transtornos do sono como um capítulo próprio e o reconhecimento das condições relacionadas à Medicina Tradicional. Além disso, doenças hematológicas e distúrbios do sistema imune agora estão categorizados separadamente, o que facilita o diagnóstico e o tratamento.
Uma inovação importante é a incorporação da funcionalidade como uma nova seção, representando uma integração simplificada da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF). Isso permite melhor quantificação e detalhamento de condições como déficits cognitivos, utilizando códigos adicionais. O número de códigos da CID saltou de 2 mil para 17 mil, ampliando a precisão na descrição das situações clínicas.
Uma Nova Perspectiva sobre Saúde e Qualidade de Vida
Mais do que uma atualização técnica, a CID-11 promove uma mudança conceitual. Um dos focos é a qualidade de vida, reforçando a importância não apenas da longevidade, mas também da dignidade e bem-estar social dos indivíduos. “Não é suficiente viver mais anos; é essencial viver bem. A sociedade deve estar preparada para garantir que todos, inclusive idosos e pessoas com mobilidade reduzida, possam usufruir plenamente da vida social”, defende Silvia.
Essa abordagem está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, cujo lema é “não deixar ninguém para trás”. Segundo Silvia, a incorporação da funcionalidade na CID é uma evolução significativa: “Uma pessoa com mobilidade reduzida pode ter uma vida plena e digna se a sociedade estiver adaptada. A deficiência não é da pessoa, mas de uma sociedade que não a acolhe.”
A nova classificação também simplifica a obtenção de direitos para pessoas com deficiências. Agora, um único código pode descrever de maneira adequada as necessidades específicas de um paciente, evitando a necessidade de múltiplos códigos. Como exemplo prático, Silvia cita o caso de crianças com síndromes genéticas, que, com a CID-11, poderão ter mais facilidade para garantir benefícios como cadeira de rodas e gratuidade para acompanhantes no transporte público.
Finalidades da CID
A Classificação Internacional de Doenças serve como uma base comum para coleta e análise de informações de saúde em nível mundial. Seu uso é fundamental tanto para a análise epidemiológica e alocação de recursos quanto para pesquisas e documentações clínicas individuais, como reembolsos e apoio à decisão médica. “A CID traduz diagnósticos em códigos alfanuméricos, permitindo o arquivamento e a análise padronizada das informações. Ela é a linguagem internacional para a descrição de condições de saúde”, explica Silvia.
A interoperabilidade global é uma das grandes forças da CID. Por exemplo, o código “I10” para hipertensão arterial sistêmica é reconhecido universalmente, garantindo que profissionais de saúde de diferentes países compreendam rapidamente do que se trata o diagnóstico.
No Brasil, o processo de implementação da CID-11 é coordenado pelo Ministério da Saúde, através do Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis (DAENT). Este trabalho envolve a adaptação dos sistemas de informação, capacitação de profissionais e validação de instrumentos técnicos, garantindo uma transição estruturada e eficiente.
Construção Coletiva e Consenso
O professor Paulo Lotufo, coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas da USP, resgata a trajetória da CID, lembrando que em 1900 a Europa iniciou tentativas de classificar as doenças sistematicamente. Com a criação da OMS, a responsabilidade pela revisão passou a ser global. Lotufo, que iniciou sua carreira trabalhando com estatísticas de mortalidade, destaca que, embora a transição da CID-9 para a CID-10 tenha sido complexa, o processo de construção das novas versões tornou-se mais organizado.
Atualmente, as decisões sobre atualizações da CID são tomadas por consenso entre representantes de diversos países. Silvia relata que, mesmo diante de divergências, prevalece o respeito às diferentes realidades epidemiológicas e sociais de cada nação. Apesar de possíveis pressões políticas, o sistema de governança estabelecido pela OMS tem se mostrado eficaz em manter a integridade do processo.
Outra inovação da CID-11 é a possibilidade de participação pública em sua atualização contínua. Qualquer pessoa pode se cadastrar e propor mudanças, que são analisadas tecnicamente antes de serem aceitas. “É um processo colaborativo e democrático, que garante que a classificação evolua de forma contínua e transparente”, conclui Silvia.