A malária, doença parasitária transmitida por mosquitos do gênero Anopheles, continua sendo um dos maiores desafios de saúde pública global. O ciclo de transmissão ocorre quando o inseto pica uma pessoa infectada e ingere sangue contendo o parasita Plasmodium, que precisa se desenvolver dentro do mosquito até alcançar suas glândulas salivares para então ser transmitido a outro ser humano.
Uma nova pesquisa publicada na revista Nature pode mudar esse cenário. O estudo conseguiu impedir que o parasita complete seu ciclo dentro do mosquito, interrompendo a transmissão antes mesmo que chegue aos humanos.
A pesquisa internacional
O trabalho foi liderado por cientistas da University of California, San Diego e da Johns Hopkins University, com a participação do professor Rodrigo Malavazi Corder, do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).
O alvo da intervenção foi o gene FREP1 (Fibrinogen-Related Protein 1), responsável por codificar uma proteína necessária para que o parasita atravesse a parede intestinal do inseto. Algumas populações de mosquitos já possuem naturalmente uma variante desse gene, chamada FREP1Q, que altera levemente a proteína e dificulta a entrada do Plasmodium falciparum – espécie responsável pela forma mais grave da malária.
A modificação genética
No novo estudo, os pesquisadores introduziram a variante FREP1Q em uma espécie transmissora chamada Anopheles stephensi, comum na Ásia e em expansão na África. Em testes de laboratório, os mosquitos modificados apresentaram taxas de infecção muito menores e, quando infectados, carregavam quantidades significativamente reduzidas de parasitas.
Um ponto importante é que a modificação não afetou aspectos fundamentais da biologia do inseto, como longevidade ou capacidade reprodutiva.
Gene drive: aumentando a herança genética
Para garantir a disseminação dessa característica, foi usada a técnica do gene drive, que aumenta drasticamente a chance de um gene ser transmitido para a geração seguinte.
“Normalmente, um gene tem 50% de probabilidade de ser herdado. Com o gene drive, essa probabilidade pode chegar perto de 100%”, explica o professor Rodrigo Corder.
Nos experimentos, a frequência de mosquitos portadores da variante passou de 25% para mais de 90% em apenas dez gerações.
Modelagem matemática e colaboração brasileira
A contribuição do ICB-USP concentrou-se na modelagem matemática da disseminação da característica genética.
“Meu trabalho se concentra na modelagem matemática de sistemas biológicos”, explica Corder. “Em cooperação com John Marshall, da Universidade da Califórnia, Berkeley, utilizamos os dados gerados nos experimentos para entender os mecanismos que governam a propagação da variante genética ao longo das gerações”.
Situação no Brasil
No Brasil, o principal transmissor da malária é o Anopheles darlingi, predominante na Amazônia. Ainda não se sabe se a variante FREP1Q teria o mesmo efeito nessa espécie. Segundo Corder, já existem conversas preliminares para formar um grupo de pesquisa dedicado a investigar a aplicabilidade dessa abordagem em mosquitos e parasitas locais.
Importância global
A malária permanece uma doença de grande impacto. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2023 foram registrados mais de 260 milhões de casos e quase 600 mil mortes em todo o mundo. Apesar dos esforços com métodos tradicionais – como uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas, diagnóstico rápido e tratamento precoce – a incidência da doença está estagnada há cerca de uma década.
Nesse contexto, novas estratégias se tornam essenciais.
“Essas abordagens genéticas são promissoras porque podem reduzir a capacidade de transmissão do parasita sem eliminar a população de mosquitos, o que tende a ser ecologicamente menos agressivo”, conclui Corder.
A pesquisa reforça a importância de soluções inovadoras no combate a doenças negligenciadas, mostrando como a biotecnologia aplicada à saúde pode abrir caminhos para superar barreiras que a medicina tradicional ainda não conseguiu vencer.


