Em 1986, o epidemiologista e professor de neurologia David A. Snowdon iniciou um dos estudos mais longevos e reveladores sobre o envelhecimento cerebral e a demência: o Nun Study, ou Estudo das Freiras. A pesquisa, que se aproxima dos 40 anos de existência, tornou-se um marco científico ao lançar luz sobre os mecanismos por trás do Alzheimer, da reserva cognitiva e da resiliência cerebral.
A investigação acompanhou 678 freiras da ordem das Irmãs Escolares de Nossa Senhora, todas com mais de 75 anos no início da coleta de dados, e residentes em conventos de sete cidades dos Estados Unidos. O grupo se mostrou ideal para esse tipo de estudo por sua homogeneidade em estilo de vida, dieta, rotina, acesso à saúde e nível educacional. Isso permitiu isolar variáveis e identificar com mais precisão os fatores associados ao declínio cognitivo.
Compromisso com a ciência
As freiras aceitaram três condições fundamentais para participar: realizar exames anuais, fornecer documentos pessoais e médicos, e doar seus cérebros após a morte. Essa disposição permitiu aos pesquisadores um raro acesso a informações clínicas, biográficas e anatômicas ao longo de décadas.
Os resultados obtidos ao longo do tempo contribuíram para transformar o entendimento sobre o Alzheimer. Entre os principais achados estão a importância da educação formal, da estímulo intelectual contínuo e da reserva cognitiva como fatores de proteção frente ao desenvolvimento de doenças neurodegenerativas.
A reserva cognitiva como fator protetor
Um dos marcos mais conhecidos do estudo foi a análise de redações escritas pelas freiras quando ingressaram na vida religiosa, entre os 18 e 22 anos. Os textos foram avaliados em termos de vocabulário, complexidade e densidade de ideias. As participantes que escreveram textos mais sofisticados apresentaram menor risco de desenvolver Alzheimer décadas mais tarde.
Essa observação sustentou a teoria da reserva cognitiva, conceito que sugere que o cérebro pode criar mecanismos de compensação para retardar os efeitos clínicos da demência, mesmo que as alterações patológicas já estejam presentes. Segundo especialistas, essa “poupança cerebral” é fortalecida ao longo da vida por atividades como leitura, aprendizado de novos idiomas, educação formal e estímulos intelectuais diversos.
Cérebros resilientes e o desafio do diagnóstico
Outro ponto importante levantado pelo Nun Study foi a resiliência cerebral. Autópsias realizadas em algumas participantes revelaram acúmulos significativos das proteínas beta-amiloide e Tau — associadas ao Alzheimer —, mas essas freiras não apresentavam sintomas clínicos de demência em vida.
A capacidade do cérebro de manter suas funções cognitivas apesar da presença dessas alterações patológicas ainda está sendo investigada. Fatores genéticos, ambientais e comportamentais podem estar envolvidos nesse tipo de proteção neurológica.
A complexidade da demência mista
Além de aprofundar o conhecimento sobre o Alzheimer, o Estudo das Freiras também trouxe evidências de que muitas pacientes não apresentavam apenas uma forma da doença. Em grande parte dos casos, foram identificadas demências mistas, com a presença de lesões associadas a Alzheimer, demência vascular, corpos de Lewy, entre outras.
Essa constatação reforça a necessidade de diagnósticos mais amplos e tratamentos mais individualizados, que considerem a coexistência de múltiplas alterações cerebrais em pacientes idosos. Segundo os pesquisadores, futuros tratamentos poderão exigir a combinação de diferentes abordagens terapêuticas para lidar com essa complexidade.
O papel da genética
O estudo também contribuiu para consolidar o conhecimento sobre a influência do gene APOE4, um dos principais fatores de risco genético para Alzheimer. Participantes portadoras de uma ou duas cópias do gene apresentaram risco significativamente aumentado para o desenvolvimento da doença.
Um legado em evolução
Apesar da morte de todas as participantes originais, o Nun Study permanece ativo. A nova fase da pesquisa é liderada pela neuropatologista Margaret Flanagan, na Universidade do Texas em San Antonio. O projeto agora se volta à digitalização de arquivos históricos, como cartas, diários, exames e dados patológicos, para integrar tecnologias de inteligência artificial na análise dos materiais.
A expectativa é que a combinação entre esse acervo detalhado e as ferramentas digitais permita novas descobertas sobre o Alzheimer, sua origem, progressão e mecanismos de proteção.
Entre as perguntas que ainda desafiam os cientistas estão: por que o cérebro começa a acumular proteínas como beta-amiloide e Tau?, como a educação e a estimulação intelectual impactam biologicamente o cérebro?
Um detalhe inspirador
Curiosamente, uma das descobertas mais singelas do estudo mostra que as freiras que escreveram textos com um tom mais positivo e otimista na juventude apresentaram menor risco de desenvolver demência na velhice. Embora o otimismo não seja, por si só, uma proteção comprovada, o dado levanta hipóteses interessantes sobre a influência do estado emocional e psicológico ao longo da vida na saúde cerebral.
Conclusão
O Estudo das Freiras permanece como um dos projetos mais influentes da ciência moderna sobre demência. Suas contribuições vão além da medicina, alcançando áreas como psicologia, educação, genética e saúde pública. À medida que novas tecnologias são incorporadas ao estudo, cresce a expectativa de que ainda há muito a se aprender com esse grupo de mulheres que, silenciosamente, transformaram o entendimento sobre o Alzheimer.