Investigação revela brechas legais e dilemas éticos em uma indústria bilionária
O caso de Harold Dillard, ex-mecânico do Texas diagnosticado com câncer em 2009, ilustra de forma marcante os dilemas do comércio de corpos humanos nos Estados Unidos. Ao aceitar doar seu corpo para a ciência, acreditava estar ajudando médicos e aliviando os custos de sua família. Contudo, meses após sua morte, a filha recebeu um telefonema inesperado: a polícia havia encontrado a cabeça de seu pai em um depósito da empresa Bio Care, junto a mais de 100 partes de corpos de 45 pessoas.
Esse episódio expôs a atuação dos chamados “comerciantes de corpos” — empresas privadas que adquirem cadáveres, dissecam e revendem partes para universidades e indústrias médicas. Embora a doação de corpos seja prática comum e vista como ato altruísta, a falta de regulamentação específica nos EUA abriu espaço para práticas abusivas.
Do altruísmo à indústria lucrativa
Historicamente, a doação de cadáveres foi crucial para a formação de médicos e o avanço científico. Programas de doação universitários, como o da Universidade da Califórnia, seguem normas rigorosas e não têm fins lucrativos. No entanto, nas últimas décadas, empresas privadas passaram a atuar como intermediárias, cobrando pelo “processamento” das partes.
Uma investigação da Reuters, em 2017, identificou pelo menos 25 empresas que lucraram milhões de dólares com esse comércio. Enquanto algumas alegam seguir padrões éticos, outras foram acusadas de mutilar corpos e explorar famílias em luto.
Comércio global e falta de controle
A legislação americana permite a cobrança de taxas “razoáveis” pelo processamento de tecidos, o que, na prática, viabilizou a expansão de um mercado global. Estima-se que entre 2011 e 2015, mais de 50 mil corpos tenham sido repassados por intermediários privados nos EUA, distribuindo 182 mil partes para mais de 50 países, incluindo o Brasil.
Casos de corpos doados sem consentimento familiar, como o de Dale Leggett, no Texas, reforçam críticas à falta de supervisão. O corpo dele, não reclamado por familiares, foi usado por uma empresa de educação médica com fins lucrativos, surpreendendo seu irmão ao descobrir a informação meses depois.
Entre avanços e controvérsias
Especialistas destacam que o uso de cadáveres é essencial para treinar médicos e desenvolver tecnologias como próteses e cirurgias robóticas. No entanto, cresce a pressão por regulamentação que impeça o lucro excessivo.
Para alguns, a saída pode ser fortalecer campanhas de doação altruísta e investir em tecnologias como a realidade virtual. A Case Western Reserve University já substituiu corpos por modelos em 3D em parte de seus programas de treinamento.
Entretanto, para muitos estudiosos, essas soluções ainda não substituem a experiência com cadáveres reais. Até que alternativas sejam consolidadas, a demanda continuará existindo — assim como os dilemas éticos em torno dessa prática.


