O panorama da hepatite C no Brasil mudou drasticamente nos últimos dez anos. O que antes era encarado quase como uma sentença de morte passou a ter prognóstico altamente favorável. Dados do mais recente Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais, publicado em julho de 2025 pela Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, revelam uma queda expressiva de 60% nas mortes por hepatite C entre 2014 e 2024. O coeficiente de mortalidade, que ultrapassava 1 óbito por 100 mil habitantes, caiu para 0,4 no ano de 2024.
O levantamento baseou-se em informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), abrangendo um período de 24 anos (2000 a 2024). Apesar da hepatite C continuar sendo responsável por mais da metade dos óbitos relacionados às hepatites virais no país (51,6%), a tendência de redução é evidente e consistente em todas as regiões brasileiras.
Segundo o médico infectologista e professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Dr. Klinger Soares Faico Filho, a redução na mortalidade representa uma das mais significativas conquistas da medicina brasileira na última década. “A combinação de novos medicamentos altamente eficazes, ampliação do diagnóstico e políticas públicas direcionadas transformou completamente o prognóstico dessa doença. Hoje, podemos falar em cura para mais de 95% dos pacientes que iniciam o tratamento adequado”, destacou o especialista, que também é CEO do projeto InfectoCast.
O fator determinante para essa mudança foi a introdução dos antivirais de ação direta (DAAs) a partir de 2014. Esses medicamentos revolucionaram o tratamento da hepatite C ao permitir a eliminação do vírus em um período de 8 a 12 semanas, com poucos efeitos colaterais. Desde 2015, os DAAs estão disponíveis gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). Antes disso, o tratamento convencional com interferon e ribavirina poderia durar até 48 semanas, com uma taxa de cura inferior a 50% e significativa toxicidade.
Apesar do avanço, o Dr. Faico Filho alerta para um desafio persistente: o desconhecimento da infecção. “Embora tenhamos excelentes ferramentas de tratamento, muitas pessoas ainda não sabem que têm hepatite C. A doença é silenciosa e pode permanecer assintomática por décadas, causando danos progressivos ao fígado. Estima-se que cerca de 70% das pessoas infectadas no Brasil ainda não foram diagnosticadas.”
A análise regional revela que o Sudeste concentra 55,8% das mortes por hepatite C, seguido pelas regiões Sul (23,5%) e Nordeste (11,1%). Essa distribuição é influenciada tanto pela densidade populacional quanto por fatores históricos, como o uso de seringas não descartáveis em procedimentos médicos entre as décadas de 1960 e 1980, que foi uma das principais vias de transmissão do vírus no país.
Para que mais pessoas se beneficiem das conquistas terapêuticas, o Ministério da Saúde recomenda que a população realize o teste de hepatite C, disponível gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). O teste inicial identifica anticorpos contra o vírus, e, em caso de resultado positivo, um exame molecular é realizado para confirmar a presença ativa do vírus no organismo.
Grupos considerados de maior risco devem realizar o exame com prioridade. Entre eles estão pessoas que receberam transfusão de sangue antes de 1993, usuários de drogas injetáveis (mesmo que uma única vez), indivíduos com tatuagens ou piercings feitos com materiais não esterilizados, profissionais da saúde expostos a material biológico, pessoas vivendo com HIV e aqueles nascidos entre 1945 e 1965 — período de maior exposição ao vírus.
É fundamental esclarecer que a hepatite C não é transmitida por meio de contato social, como abraços, beijos ou compartilhamento de utensílios domésticos. A prevenção está diretamente ligada ao não compartilhamento de objetos cortantes e ao uso de materiais descartáveis em procedimentos médicos ou estéticos. A prática do sexo seguro, com o uso de preservativos, também é essencial.
A hepatite C é uma doença que pode ser completamente curada se diagnosticada precocemente e tratada de forma adequada. Além de evitar a progressão para quadros mais graves, como cirrose e câncer hepático, o tratamento representa uma oportunidade concreta de erradicação do vírus no organismo e melhora da qualidade de vida do paciente.